Com a criança na cabeça

Keith White e John Collier são membros fundadores do Child Theology Movement (Movimento Teologia da Criança), uma organização sediada na Inglaterra cuja missão é promover o diálogo, o aprimoramento e a pesquisa sobre a natureza e o significado da criança para o cristianismo dando especial atenção aos ensinamentos de Jesus sobre as crianças. Para cumprir essa missão o movimento tem-se envolvido em consultas teológicas nos quatro cantos do mundo. Por meio do diálogo com líderes evangélicos, o movimento busca apoiar o ministério da Igreja com crianças no mundo todo. Tanto Keith quanto John estarão no Brasil em setembro de 2006 para uma consulta teológica a convite de Mãos Dadas e Visão Mundial.

Keith é professor de teologia no Spurgeon´s College, Inglaterra, e faz parte da quarta geração de uma família profundamente comprometida com crianças em risco. Sua casa em Mill Grove já recebeu desde 1899 mais de 1200 crianças carentes.
John é um médico pesquisador aposentado que entre muitas outras aventuras e compromissos na área social foi o idealizador de Mãos Dadas, que está completando cinco anos!

MD – Teologia parece ser uma palavra tão imponente que pode às vezes inspirar medo e distância. Como vocês definiriam o termo “teologia cristã”?

Keith e John – É simplesmente “falar sobre Deus”. Algo que, temos certeza, todos os leitores deMãos Dadas fazem com freqüência. “Teologia” vem de duas palavras gregas: “Teos” e “logos,” que significam “Deus” e “palavra”. Quando dizemos que “Deus é amor,” estamos fazendo uma afirmação teológica. É claro que outras religiões também fazem suas teologias. É por isso que precisamos especificar: “Teologia cristã”. Há religiões que acreditam em um só deus; e somos tentados a dizer que adoramos o mesmo Deus. Mas o deus de que eles falam às vezes está muito longe do Deus em quem nós cristãos cremos. O que dizemos sobre Deus é muito importante, por isso que teologia também é muito importante.

MD – As pessoas associam teologia cristã ao trabalho dos pastores, missionários e professores de seminários. É verdade que eles precisam ter uma formação teológica boa para realizarem um bom ministério, mas eles são os únicos cristãos que “fazem” teologia? Quem faz teologia?

Keith e John – Todo cristão faz teologia. Na verdade, mesmo quando não usamos palavras para descrever a Deus, expressamos nossa teologia por meio de ações. Portanto, a maneira como nos relacionamos com outros cristãos, como evangelizamos; tudo diz algo sobre o Deus a quem adoramos. Até a forma como lavamos a louça ou descansamos no final do dia diz algo sobre o Deus que ocupa o centro de nossas vidas. Deus tem um plano para a minha vida? Vivo a vida de acordo com este plano? Deus me ama? Manifesto este amor na maneira como aprecio a mim mesmo e aos outros que estão ao meu redor? Na teologia da criança, essas considerações são muito importantes. Quando descobrimos os ensinamentos de Jesus segundo os quais as crianças têm um relacionamento particular com Deus e uma compreensão especial dele, concluímos que não há lugar para superioridade. Somos todos alunos, somos todos professores.

MD – Como podemos fazer teologia de forma apropriada? O que precisamos lembrar para evitar grandes erros?

Keith e John – Quando a teologia da criança diz que não há lugar para superioridade e que todos somos professores, pode acabar caindo em alguns erros. Por isso, há alguns princípios importantes que precisam ser observados. Em primeiro lugar, teologia é algo que precisa ser feito em comunidade. Não é o trabalho isolado de uma pessoa. Deus não costuma agir assim. Cada pessoa traz consigo suas experiências e pensamentos sobre Deus, assim como levamos pratos diferentes a um “junta-panelas”; Os pratos reunidos se tornam um banquete apreciado por todos. A comunidade de que falamos é uma comunidade representativa de toda a sociedade, não apenas de um grupo como o de professores de um seminário, por exemplo. Mas homens, mulheres, crianças — os que trabalham com livros e os que trabalham com ferramentas manuais — todos têm pensamentos que refletem nossa compreensão de Deus.
Em segundo lugar, nossa teologia deve estar fundamentada nas Escrituras, não só nas nossas passagens favoritas, como por exemplo, nas cartas de Paulo, mas em toda a Bíblia.
Em terceiro lugar, teologia não consiste em criar uma lista de versículos que falam sobre um assunto específico. É muito difícil encontrar dois versículos que dizem exatamente a mesma coisa. Precisamos explorar as diferenças entre as passagens e pensar no por quê delas — será que os versículos estavam se referindo a situações diferentes? Precisamos também considerar o contexto específico daquela passagem e compará-lo com a nossa situação presente. Se a situação no passado era diferente das situações vividas hoje, como isto vai afetar a aplicação daquela passagem bíblica para esta situação específica? Finalmente, é importante voltar a dizer que teologia não se resume à palavra. É preciso fazer teologia; É algo a ser vivido, algo que afeta a maneira como levamos a vida e que nos orienta quanto às escolhas que fazemos.

MD – Vocês podem nos dar exemplos de pensamentos teológicos bons que levaram a boas práticas? E exemplos de pensamentos teológicos que continham erros e levaram a práticas ruins?

Keith e John – Um bom pensamento é a idéia de que a igreja não deve se estabelecer de forma a excluir a participação de suas ovelhas. A igreja está aonde suas ovelhas estiverem. Pensando assim, o projeto PEPE* busca melhorar a capacidade das pequenas igrejas nas favelas de atenderem às necessidades das crianças de lá. Essa ação envolveu uma revisão da nossa teologia com respeito à igreja (eclesiologia) levando-se em conta as experiências de vida das pessoas nas favelas. As estruturas e atividades da Igreja se desenvolveram por centenas de anos em situações específicas, mas a Bíblia não diz que é necessário construir santuários imponentes, corais, púlpitos, sistemas de som, nem que o local ideal para se congregar seja o centro de uma cidade! Um mau exemplo aconteceu na Inglaterra. O pensamento errado de que um problema do mundo espiritual poderia ser resolvido submetendo as vítimas à dor física. Pensando assim, um pastor achou que algumas crianças estavam praticando feitiçaria decidiu que isso as qualificava como feiticeiras e orientou seus pais a espancá-las para que fossem libertas do mau. Onde ele encontrou apoio para isto na Bíblia?

MD – Com relação às crianças, que papel a teologia tem? A teologia tem alguma contribuição a dar para pessoas que trabalham com crianças em situações de risco social? Quais?

Keith e John – É importante lembrar que não se faz teologia de forma divorciada da vida. Nossa compreensão de Deus afeta a maneira como nos relacionamos com as crianças. Em Mateus 18 lemos que os discípulos tinham uma idéia de Deus. Eles o viam como o grande Rei e naturalmente se perguntavam o que significava “ser grande” no reino dos céus. Jesus pegou uma criança e a colocou no meio desta controvérsia teológica. O que Jesus disse sobre a criança desafiou a visão que os discípulos tinham do reino de Deus e até os conceitos sobre o próprio Deus. Lembre-se, a pergunta teológica mais básica não é “Deus existe?”; mas “Como Deus é?” O desafio de cuidar de crianças em risco é grande! Os problemas são muitos e sem solução aparente. Nossa alegria pelo progresso alcançado com dificuldade às vezes se transforma em decepção amarga quando a criança regride ou se rebela. A teologia da cruz nos exorta a não desistir, não desanimar. Ela nos diz que a vitória pode vir por meio do sofrimento e até do fracasso momentâneo; a morte não tem a palavra final. Esta pertence somente a Deus. Sua palavra para nós é Jesus, e em Jesus tudo pode ser re-feito e todos podem ser restaurados.

MD – As disciplinas como educação, psicologia, sociologia, medicina, direito e outras, têm muito a contribuir no trabalho com crianças. Que contribuição é específica da teologia?

Keith e John – Temos de ser cautelosos ao afirmar que há algo que só pode vir da teologia. Toda verdade é verdade de Deus. É possível que outras disciplinas tenham feito descobertas importantes sobre os problemas que enfrentamos. Dito isso, acreditamos que a teologia tem algo especial a contribuir para a compreensão e desenvolvimento da espiritualidade da criança. Uma espiritualidade bem cultivada nos fortalece com recursos internos que nos ajudam a lidar com a adversidade. A teologia também lida com as perguntas existenciais básicas da vida: A busca por significado e identidade. E, é claro, tem muito a dizer, com toda a autoridade, sobre a morte!

MD – E qual é a contribuição das crianças à teologia. O que só a criança pode trazer para a teologia? 

Keith e John – A criança faz sua maior contribuição simplesmente sendo criança. Não precisa se tornar um mini-adulto precoce. Há muitas maneiras pelas quais as crianças nos ajudam. Mencionamos duas: Elas não escondem seus interesses, estão livres das artimanhas e manipulações que caracterizam algumas das nossas discussões adultas. Elas são também capazes de fazer as perguntas mais óbvias e mais difíceis e se contentam em aceitar que não têm as respostas ou que não sabem tudo. Às vezes os adultos acham que precisam ter todas as respostas e por isso tomam cuidado para não fazer uma pergunta para a qual não tenham respostas.

Mãos Dadas quis saber mais sobre as contribuições das crianças nas discussões sobre o reino de Deus. Keith e John não querem dar respostas prontas. Querem sim, estimular todos os cristãos a juntos buscarem com seriedade e profundidade respostas (especialmente no texto bíblico) que, quem sabe, mudarão a forma como vemos e nos relacionamos com a criança.

* PEPE significa Programa de Educação Pré-escolar, um projeto da Missão ABIAH realizado principalmente em São Paulo e nordeste. O projeto apóia pré-escolas montadas nas dependências de igrejas situadas nas periferias urbanas.