Compaixão é… ver, ouvir, falar e agir

O que é necessário para um adulto agir em favor da criança? Essa pergunta suscitou várias respostas numa reunião dos parceiros da revista Mãos Dadas. Mas a que se sobressaiu a todas foi: “mais compaixão!”

Fiquei surpresa. Nossas ocupações como agentes sociais cristãos são notoriamente destituídas de grandes atrativos financeiros. Agimos por amor, orientados pelo ideal cristão de prover para nossas crianças sofredoras a vida que Jesus Cristo sonhou para elas.

Então por que esse consenso de que falta compaixão?
Refleti sobre as reclamações dos colegas. Um pai social queria devolver um adolescente (não se sabe para quem) porque sua agressividade o tornava de difícil convivência. Uma monitora de centro estudantil se preocupava com uma família assistida pelo projeto cuja moradia corria o risco de desabar, mas não conseguia tomar nenhuma providência para evitar a tragédia que tanto temia. Uma educadora sabia que sua aluna da creche estava sendo vítima de maus-tratos e talvez até de abuso sexual, mas se sentia impotente para mudar a situação.

Conclusão: o fator comum é o sentimento de impotência. Não faltam pesar, tristeza, dor, pelas aflições das crianças. Talvez o que falta seja uma compreensão mais ampla e dinâmica da compaixão. Sofremos de uma certa paralisia espiritual e emocional de forma que “vemos, mas não vemos”, “ouvimos, mas não ouvimos”. Conseqüentemente, não levantamos a voz em favor de crianças e adolescentes sofredores e não estendemos os braços para acolhê-los como convidados de honra do reino de Deus.
Ver, ouvir, falar e agir são aspectos da compaixão praticada e ensinada por Jesus.


Compaixão é ver aquele que sofre como Deus o vê

Conta-se a história de um urso muito compassivo, que, ao ver um peixinho batendo de encontro ao barranco do rio repetidas vezes, foi movido a ajudá-lo. O urso pensou: “Coitado, está tentando subir e sair daquela água fria para tomar um solzinho aqui na grama”. Como não suportava ver o sofrimento alheio sem fazer alguma coisa, o urso logo entrou em ação. Arriscou cair na correnteza daquele rio perigoso para retirar o peixinho da água e colocá-lo às margens do rio. Satisfeito com sua boa obra do dia, deitou-se ao lado do peixinho (agora moribundo) e tirou aquela soneca gostosa.
Agimos como esse urso quando caímos no erro em que ele caiu: péssima interpretação da realidade. Não estamos imunes a esse mal. Em nossas comunidades evangélicas, muitas vezes reproduzimos as “péssimas interpretações da realidade” veiculadas por este mundo cão:
– Fazemos discriminação de classe social: cultuamos a Deus em igrejas segregadas; os ricos nas “igrejas de ricos” e os pobres nas “igrejas de pobres”;
– Vemos pelos óculos do racismo: valorizamos o cabelo liso, os olhos azuis e a tez clara; achamos que todo negro é pobre ou inculto. Qual foi a última vez que você ouviu um sermão sobre o princípio da igualdade cristã aplicado à discriminação de raça? A característica do racismo brasileiro está na omissão e nas ações veladas de discriminação. O não-falar é negar a existência do problema;
– Continuamos a delegar às mulheres tarefas que os homens não querem fazer ou a repeli-los de funções que julgamos femininas, mas que na verdade são simplesmente humanas (dar carinho e afeto a uma criança, por exemplo). Não conseguimos perceber que para Deus nós, homens e mulheres, temos o mesmo valor.
Se não mudarmos a nossa visão de mundo, projetaremos essas expectativas na maneira como tratamos as crianças. Outro dia descobri que a nossa merendeira estava adicionando água ao leite no pico de produção das cabras. Estava sobrando leite, mas mesmo assim ela adicionava água. É como se a criança pobre não tivesse o direito de tomar leite puro!

Ver aquele que sofre como Deus o vê exige mudança de foco: precisamos de uma visão panorâmica e mais ampliada, de uma visão total. De acordo com a Bíblia, assistimos a um conflito cósmico entre os poderes do mal e Deus (Sl 2). O salmista nos lembra que por meio de Jesus o Senhor vence. Por que o sofrimento existe? Quais são as suas causas? Onde está Deus no momento em que uma criança sofre? Quais as saídas bíblicas para problemas como pobreza extrema, maus-tratos, doença, violência urbana, injustiça social, drogas e álcool, males que tanto afetam as crianças e os adolescentes? Se não tivermos uma resposta bem pensada e fundamentada na Bíblia para essas questões, fatalmente absorveremos visões não-cristãs e equivocadas sobre esses assuntos.

Só temos duas alternativas: ou vemos a criança como Jesus a vê, como ser especial, cheio de valor e potencial, ou vemos a criança como o mundo a vê. Uma dessas maneiras de ver tende ao sentimentalismo romântico: a criança inocente e pura, incapaz de conceber o mal. A outra tende ao determinismo fatalista: a criança fadada a repetir os erros dos pais, “criança-problema”, criança sem futuro.

Mudar a visão é preciso.

Ao acordar e ver que o peixinho está morto, o urso ficará muito triste e confuso. Perceberá o erro de interpretação da realidade e descobrirá que um bom coração, embora seja essencial, não é o suficiente.

Compaixão é ouvir aquele que sofre como Deus o ouve
Ouvir como Deus ouve é impossível; afinal Ele é onisciente. Mas é por isso mesmo que precisamos nos aproximar da pessoa que sofre. Para ouvir é preciso chegar mais perto.

À medida que nos aproximamos, algo estranho acontece: nós começamos a mudar. Começamos a entender a maneira como a pessoa encara as coisas. Talvez esteja errada em suas conclusões, mas suas idéias já não soam tão absurdas para nós.

Fiquei sabendo que os homens de um bairro periférico de Viçosa (MG) — onde mantemos um trabalho voltado às mulheres — não gostam que suas companheiras trabalhem fora de casa. Mas como? A renda extra certamente ajudaria no orçamento familiar.

Mas a percepção desses homens é que, quando uma mulher começa a trabalhar fora, logo arruma outro homem. Nesse bairro há vários casos de mulheres que, ao se cansarem de um casamento conflituoso, buscaram o emprego como meio de escape. Assim que o conseguiram, mandaram seus companheiros embora. Talvez a idéia fixa de que a mulher, uma vez empregada, busca um relacionamento adúltero seja absurda para nós. Mas, pensando bem, da perspectiva desses homens, esse raciocínio — ainda que errôneo — tem alguma lógica.

A escuta nos permite também descobrir onde a pessoa está em seu processo de desenvolvimento, em que mentiras acredita sobre si mesma, sobre os outros e sobre Deus. Sente-se culpada pelo próprio sofrimento ou sente-se vítima? Acredita que Deus a está punindo deliberadamente ou que Ele a abandonou?

Quando pensamos em crianças e adolescentes, o esforço na escuta precisa ser redobrado. As crianças muitas vezes nos “lêem” e dizem para nós o que gostaríamos de ouvir. Esse “ouvir” tem de se estender a uma observação mais cuidadosa. Precisamos buscar em seu comportamento revelações sobre seu mundo interior, sobre o que se passa em seus corações.

Conheci o David* num dia em que fui tirar fotos das crianças na creche. Fiquei impressionada com a sua aparência apática. Ele não encarava ninguém, não tinha brilho nos olhos, mantinha a boca numa posição estranha, parecia uma criança portadora de deficiência mental. De vez em quando ele se transformava e tal era o seu comportamento anti-social, que alguns chegaram a levantar a hipótese de que o menino estava endemoninhado. Foram feitas visitas à família para constatar aquilo de que já suspeitávamos: muita negligência, abandono e miséria. Finalmente conseguimos atendimento psicológico para ele. O psicólogo logo diagnosticou: não faltava inteligência, que na verdade estava sobrando. O que faltava era vínculo afetivo. Hoje, David freqüenta o centro estudantil por vontade própria, sai-se muito bem em matemática e outro dia foi visto dando conselhos a um colega rebelde!

Por que falamos demais e ouvimos de menos? Porque queremos evitar a todo custo sentir o sofrimento do outro. Corremos daqui para lá buscando “consertar” a situação. Mas evitamos ao máximo entrar na tristeza, na dor, no sofrimento da outra pessoa.
Por fim, a escuta é terapêutica. Todos nós, crianças, adultos e idosos, homens e mulheres, ricos e pobres reagimos muito bem quando alguém nos empresta seus ouvidos de forma amiga e carinhosa.

Compaixão é levantar a voz em favor da pessoa que está sofrendo
Confesso que esse é o aspecto da compaixão com o qual mais tenho dificuldade. Parece que a indignação, a ira, a militância foram banidas da ética cristã evangélica. Preferimos as atitudes mais amenas e comedidas. E o nosso silêncio é tão insensível que somos motivo de escândalo para um mundo que já não vê esperança em nossa fé individualista e egocêntrica.

Ainda estudante de jornalismo, eu costumava freqüentar uma igreja num bairro periférico de Anápolis (GO). Dona Antônia*, uma irmã em Cristo, negra, com seus 70 anos e quase cega, estava a caminho da igreja num sábado de manhã quando caiu num buraco na calçada. Na verdade o buraco era uma fossa antiga cuja tampa havia apodrecido. Dona Antônia ficou ali umas duas horas, tempo em que toda a vizinhança se mobilizou para resgatá-la. Chegou ao pronto-socorro com uma fratura exposta em uma das pernas. Sentou-se para aguardar atendimento e ali ficou por mais de dez horas. Quando finalmente a atenderam, cuidaram do ferimento sem ao menos lhe darem um banho. Resultado: gangrena e amputação na altura da coxa.

Ao voltar para casa, irmãos da igreja foram visitá-la. O pastor abriu a Bíblia e leu: “Porque todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus…” Fiquei tão revoltada com essa situação que abandonei a igreja e só voltei vários anos mais tarde. Ninguém — nem eu — teve a coragem de brigar pelos direitos daquela senhora. Ninguém ousou deixar que a raiva ajudasse a impulsionar ações em prol da justiça, assim como Jesus o fez ao entrar no templo, lugar santo onde os mercadores extorquiam dinheiro dos fiéis que vinham adorar ao Pai.

É dever nosso emprestar voz aos que não têm voz: “Fale a favor daqueles que não podem se defender” (Pv 31.8). Isso pode ser feito de muitas maneiras. Existem exemplos em nossa tradição evangélica que precisam ser copiados.

Catherine Booth, uma das fundadoras do Exército de Salvação, é um desses exemplos. Ela tinha um amor especial pelas prostitutas e levantou a voz contra toda a prática da prostituição na Inglaterra, no século 19. Catherine escreveu à rainha Vitória e também ao primeiro-ministro Gladstone pedindo que as leis fossem mudadas. Com a ajuda de seu marido, ela reuniu 393 mil assinaturas em uma petição. As assinaturas foram escritas num rolo de papel com mais de duas milhas de comprimento. Esse rolo foi levado num vagão de trem até o Parlamento. Como resultado, mudanças foram feitas nas leis do país, para que jovens mulheres não fossem exploradas por homens perversos.

Um outro exemplo, mais próximo a nós, é o cartão Fale. Inspirada em Provérbios 31.8,9, essa rede tem levantado questões de injustiça social e encaminhado propostas concretas aos nossos governantes. Do ponto de vista pessoal lembremo-nos da parábola de Jesus: a viúva, por tanto insistir com o juiz iníquo, acabou tendo suas reivindicações atendidas.

Compaixão é agir em resposta prática ao sofrimento da forma que Deus dirigir 
Há inúmeras exortações no Antigo Testamento sobre a nossa obrigação de agir com compaixão. E a importância da ação é inquestionável. A Bíblia afirma: “Procure salvar quem está sendo arrastado para a morte. Você pode dizer que o problema não é seu, mas Deus conhece o seu coração e sabe os seus motivos. Ele pagará de acordo com o que cada um fizer” (Pv 24.11).

Andrew Purves, em seu livro The Search for Compassion (Buscando a compaixão), conta uma pequena anedota que ilustra bem o fato de que a compaixão exige a ação:
Há uma tirinha do Snoopy em que Charlie Brown se aproxima de uma amiga e lhe pergunta se ela está preocupada com a fome no mundo. Ela dá de ombros mostrando indiferença para com o problema. Charlie Brown se aproxima de um segundo e depois de um terceiro amigo fazendo-lhes a mesma pergunta. E recebe a mesma resposta de indiferença. Finalmente ele explode em indignação moralista e diz: “Bom, pelo menos EU me sinto CULPADO por causa da fome no mundo!”

E o autor conclui:

Muito embora Charlie Brown tenha um coração sensível e se sinta profundamente tocado pela causa dos famintos, infelizmente ele não tem compaixão por eles. A compaixão sempre nos leva a ações ministeriais em que a situação é enfrentada de forma a proporcionar cura e restauração àquele que sofre.

Em todas as nove passagens no Novo Testamento em que o verbo “compadecer-se” (splanchnizomai, no grego) é mencionado em referência a Jesus, relata-se que Ele agiu em favor daquela pessoa ou grupo de pessoas. São elas: Marcos 1.40-45, Marcos 6.30-44, Marcos 8.1-10, Marcos 9.14-29, Mateus 9.35-38, Mateus 20.29-34 e Lucas 7.11-17. Precisamos nos aprofundar nessas passagens investigando o caráter compassivo de nosso mestre.

Compaixão é ver e ouvir aquele que sofre como Deus o vê e o ouve; é falar e agir em resposta prática a esse sofrimento e em obediência às orientações específicas de Deus. Toda vez que você perceber uma certa inércia de sua parte, uma relutância em agir diante do sofrimento alheio, observe atentamente para ver onde estão as suas mãos: tapando os seus olhos, obstruindo os seus ouvidos ou fechando a sua boca? A posição certa para as nossas mãos é: uma segurando na mão de Deus e a outra estendida para o nosso próximo.

* Nomes fictícios. 

 

Autor(a): Elsie B. C. Gilbert, editora da Rede Mãos Dadas.