Cuidar como Jesus cuidava

Cuidar como Jesus cuidava

Por que as igrejas precisam de políticas claras de salvaguarda e proteção de crianças e adolescentes?

Por Alexandre Gonçalves*

A proteção de crianças e adolescentes sempre foi um chamado firme e consistente para a comunidade cristã. Em toda a Bíblia, vemos um Deus que acolhe, protege e defende os mais vulneráveis (Salmos 68:5). Ao colocar uma criança no centro do círculo dos discípulos, Jesus não estava apenas ensinando sobre humildade, mas afirmando uma verdade simples: o Reino de Deus se manifesta quando os pequenos se sentem seguros e valorizados. E ainda nos adverte: “Não desprezem um só destes pequeninos…” (Mateus 18:10).

Atualmente, esse cuidado deve se manifestar de forma prática, especialmente em nossas igrejas, ministérios e organizações sociais baseadas na fé. Ao abrirmos nossas portas para atividades com crianças e adolescentes, não apenas vivenciamos a alegria da convivência, mas também assumimos a responsabilidade de protegê-los, zelando por seu bem-estar e desenvolvimento. Tal responsabilidade exige mais que boa vontade: requer estrutura, transparência e compromisso coletivo. Por isso, políticas de salvaguarda não são mera burocracia, como o senso comum afirma, mas expressões concretas do amor cristão. Elas respondem ao chamado bíblico de falar “em favor dos que não podem defender-se” e “defender a causa dos pobres e necessitados” (Provérbios 31:8–9).

Infelizmente, a maioria dos casos de violência envolvendo crianças acontece justamente em contextos familiares, comunitários ou religiosos, espaços onde se espera acolhimento e cuidado. No entanto, a falta de preparo, ausência de regras claras, negligência ou constrangimento em denunciar, desinformação ou ingenuidade no recrutamento de voluntários, e ausência de responsabilização fazem de muitas igrejas ambientes de desproteção, onde os riscos podem até ser maiores do que em outros ambientes que julgamos mais nocivos. É aí que políticas bem feitas fazem toda a diferença. Elas ajudam a comunidade a praticar o que Jeremias afirmou com muito fervor: “Façam justiça e pratiquem o que é correto; não maltratem o estrangeiro, o órfão ou a viúva; não derramem sangue inocente” (Jeremias 22:3), e que ecoam também nas palavras de Zacarias: “Administrem verdadeira justiça; mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros. Não oprimam a viúva, o órfão, o estrangeiro ou o pobre” (Zacarias 7:9–10).

É importante que se diga, contudo, que uma política de salvaguarda não é um manual frio, destinado a poucos na igreja, geralmente aqueles(as) que lidam diretamente com as crianças e adolescentes. É um documento vivo que diz para a comunidade: aqui, cuidamos uns dos outros, levamos a sério a proteção e estamos dispostos a agir com maturidade e responsabilidade. Ela mostra como prevenir riscos, como agir quando algo preocupa e o que cada membro precisa saber paragarantir que nossas crianças cresçam em ambientes saudáveis e seguros. É a aplicação concreta da exortação de Paulo: “Nós, que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos e não agradar a nós mesmos” (Romanos 15:1).

Para isso, é importante que nossas igrejas e organizações definam claramente diretrizes individuais e operacionais: quem são seus colaboradores, voluntários e líderes; como será realizada a triagem e o recrutamento das pessoas que terão contato direto com crianças e adolescentes; quais condutas são aceitáveis e quais são proibidas; como será feito o acompanhamento de atividades, o uso de espaços físicos. Outro ponto essencial é estabelecer procedimentos práticos: como receber uma denúncia, quem deve ser acionado, como registrar os casos, como acolher e escutar possíveis vítimas e suas famílias, como garantir uma resposta adequada sem interferir na investigação das autoridades.

Quando esse fluxo está criado e comunicado com clareza, a igreja deixa de improvisar em momentos críticos e passa a agir com sabedoria. Ao contrário do que se pensa, essas definições não servem para promover um clima de desconfiança generalizado, mas para criar uma cultura de proteção e cuidado mútuo na comunidade, inclusive para quem dedica seu ministério à atenção direta às crianças e adolescentes.

É fundamental também nos lembrarmos que vivemos em um contexto legal que evoluiu para maior proteção. A Lei 14.811/2024, por exemplo, reforça a necessidade de manter certidões de antecedentes criminais atualizadas das pessoas que trabalharão com as crianças e adolescentes, além de implementar medidas educativas, preventivas e protetivas. Para igrejas e projetos sociais cristãos, isso significa assumir uma postura ativa diante da legislação, integrando a obediência civil ao compromisso espiritual.

Mas nada disso funciona se a comunidade não compreender que proteger é também uma forma de evangelizar. Isto é, mostrar o caráter de Cristo no zelo, na prudência e na responsabilidade. É reconhecer que a fé não exclui o cuidado técnico; ao contrário, o exige. É colocar em prática aquilo que Tiago chamou de “religião pura e verdadeira diante de Deus”: “cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades” (Tiago 1:27). A espiritualidade cristã não é contrária à proteção, mas sua maior e mais potente motivação.

Políticas de salvaguarda e proteção também honram a dignidade da criança, diminuindo a incidência de conselhos inadequados, disciplina imprópria ou que a linguagem espiritual seja usada para praticar abusos, ou minimizar os sofrimentos decorrentes destas violências. Além disso, elas colocam limites saudáveis sobre como devemos nos relacionar com as crianças e adolescentes, seja presencialmente ou online, criando estruturas para que o poder seja sempre exercido com serviço e nunca com abuso.

Por fim, políticas de salvaguarda e proteção não são estáticas, mas precisam ser monitoradas, avaliadas e revistas periodicamente. Ações como renovar treinamentos, atualizar documentos, verificar antecedentes, auditar processos, quando realizadas com transparência, fortalecem a confiança da comunidade e mostram que a igreja é, de fato, um lugar seguro.

O tempo de nossas igrejas assumirem esse compromisso com intencionalidade é agora! Não porque a lei exige, mas porque o Evangelho de paz e justiça demanda e inspira. Não por medo do problema ou das consequências para a reputação da igreja ou organização, mas por amor às crianças e adolescentes, pois cuidar bem destes e cuidar bem de toda a comunidade. Quando a proteção é valorizada, o Reino de Deus se manifesta na prática, no dia a dia, nas relações, e nossa fé ganha forma concreta e transformadora.

Criar e implementar uma política de salvaguarda e proteção é um ato espiritual, pastoral e comunitário. É um testemunho vivo e eficaz de nossa fé. É dizer, com ações: Aqui, cada criança importa. Aqui, ninguém está sozinho. Aqui, o cuidado é compromisso de todos nós.

Se nossas igrejas abraçarem essa missão com seriedade, coragem e humildade, estaremos construindo ambientes mais saudáveis, mais  transparentes e mais próximos do Evangelho. E então, sim, poderemos olhar para nossas crianças e adolescentes e dizer, como Jesus disse: “Deixem vir a mim os pequeninos” — sabendo que estão seguros, respeitados e protegidos.

*Educador Social, Instrutor das Metodologias do Programa Claves e ministro da Igreja da Irmandade.

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