Duas irmãs e uma vila

Eram duas irmãs, uma 11 anos mais velha que a outra e, por isso mesmo, mais sofrida e marcada pelos maus-tratos da mãe. Conheci a mais velha no trabalho que realizava com as mães das crianças atendidas pela Rebusca, uma organização cristã sediada em Viçosa (MG). A mais nova só pude conhecer na semana passada! Rita* é a mais velha, Erica a mais nova.

As duas moravam num bairro pobre afastado do centro de Viçosa. Rita deixou a escola ainda na 2ª série do ensino fundamental. A mãe vivia de esmolas e os comas alcoólicos eram frequentes. Quando Erica chegou, a mãe já perdera a guarda de vários fi lhos, sobrara apenas Rita. Erica e o irmão gêmeo nasceram prematuros. Ele morreu logo, pois a negligência era grande. Erica só não morreu também porque uma vizinha cuidou dela.

Erica, ainda pequena, ia com a mãe para o centro pedir esmolas na praça. Em várias ocasiões uma mulher vendo a menina desamparada ao lado da mãe embriagada levou-a para sua própria casa. Uma semana depois a mãe ia buscá-la e Erica voltava com muitos presentes doados pela mulher caridosa. Rita, enciumada, queimava tudo.

Aos 4 anos, Erica chegou na creche da Rebusca. Aos 6 anos sua mãe faleceu e uma amiga de Rita veio morar com as duas irmãs. O casebre tornou-se um ambiente promíscuo e Rita teve dois fi lhos. Erica evitava ao máximo ficar em casa e vivia em conflito com Rita, que a obrigava a pedir esmolas nos fins de semana. Só se sentia segura na Rebusca e na casa da vizinha.

Mas aí tudo mudou. Ester Moulin, então coordenadora da creche da Rebusca, colocou Erica, agora com 9 anos, em contato com dona Sônia Caixeta, uma senhora de 68 anos da Igreja Presbiteriana de Viçosa. Erica foi morar com dona Sônia, que conseguiu a sua guarda. Um ano depois, as duas se mudaram para Machado, terra natal de dona Sônia.

Encontrei a Erica na semana passada de férias na casa do irmão adotivo. Nesses anos a vida da Rita não melhorou. Perdeu a guarda de seus 4 filhos e vive de esmolas numa casa sem água nem luz elétrica. Erica, por sua vez, se transformou numa moça dinâmica, tratada como fi lha por dona Sônia e como irmã pelos fi lhos dessa senhora. Faz faculdade de enfermagem, tem sua carteira de habilitação para dirigir, coordena a casa de dona Sônia e ajuda as enfermeiras a cuidarem dela, que, com 80 anos, sofre de Alzheimer. Erica tem uma vida cristã ativa e afirma com convicção: “Eu vejo a mão de Deus em tudo o que aconteceu comigo. Se a dona Sônia não tivesse entrado na minha vida, eu estaria igual ou até pior que a Rita”.

Diz um provérbio africano: “É preciso uma vila inteira para educar uma criança”. A história da Rita demonstra que o contrário também é verdadeiro: “É preciso o descaso de uma vila inteira para que uma criança seja privada de seus direitos”. Na história de Erica, uma parte da “vila” resolveu se importar e provou que basta a iniciativa de um número pequeno de pessoas para que uma menina se torne uma bela moça com um sorriso contagiante e um futuro promissor! (E.G.)

Nota
* Nome fictício.

Acesse o site brasileiro da Campanha Latino-americana pelos Bons Tratos da Criança:
www.childfundbrasil.org.br

Autor(a):Elsie B. C. Gilbert, Editora da Rede Mãos Dadas.