Quando a luz das telas apaga o brilho do brincar
A casa da criança é a casa do brincar. Do barulhinho, do barulhão. Da risada, do curiar. Do choro alto, do dengo, do chorinho no colo. Também do silêncio criativo do brincar quietinho — solitude tão necessária para a infância treinar a musculatura emocional que encara a realidade da vida. Porém, há um tipo de silêncio na casa do brincar que não é paz para crescimento: é só vazio. Aquele silêncio que nasce quando a criança perde, pouco a pouco, a capacidade de estar consigo mesma. Ela não inventa mais histórias, não sonha, não cria caminhos internos. Depende de estímulos externos para existir. As telas começam a ocupar o espaço onde antes morava o brincar. Essa é a dor quase invisível, mas extremamente aguda, da infância que não volta mais.
É fato: sabe-se que ser pai e mãe hoje cansa muito mais do que em qualquer geração anterior. E às vezes é justamente esse cansaço que entrega a tela. Não por descuido, mas por sobrevivência. O trabalho não acaba, a mente não descansa, a rotina transborda. E, no meio disso tudo, o medo silencioso: “Eu nunca vou conseguir fazer o suficiente?”
“Deus pode tornar abundante em vocês toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, vocês sejam abundantes em toda boa obra”.(2 Coríntios 9:8)
“Abundante”! “Toda a graça”! “Sempre”! “Em tudo”! “Ampla suficiência”! “Abundantes em toda a boa obra”!
Uau. E quem faz isso TUDO?
“Deus pode”!
Ah, no Senhor, os pais podem sim fazer o suficiente! Aleluia!
Aqui, então, é preciso dizer a verdade com carinho: o brincar não desaparece sozinho. Ele se cala quando não encontra espaço. Diante do que a Bíblia nos diz, parece que a pergunta que realmente importa então não é “Eu nunca vou conseguir fazer o suficiente?”, mas outra — simples, direta e profundamente transformadora: Como posso tornar o brincar possível dentro da minha realidade? Sem romantizar. Sem exigir do adulto um heroísmo inalcançável. Sem imaginar cenários ideais que não existem na vida real. A questão é outra: como trazer o brincar para dentro da rotina — e não apesar dela?
Vamos pensar em uma imagem que nos ajuda a compreender essa questão: a casa vazia do brincar. É aquela casa onde não há barulho de historinhas inventadas, nem personagens voando, nem potes virando navios, nem almofadas virando montanhas. A criança está ali — mas está longe. Presente no corpo, mas distante por dentro. Sozinha demais, silenciosa demais, passiva demais. Uma casa onde a tela ilumina o rosto, mas não acende o mundo interno.
Essa casa, sim, exige um esforço emocional que é real. Mas isso não precisa ser pesado. Não exige performance e nem uma criatividade extraordinária. E, principalmente, não exige um tempo que o pai/ a mãe não tem. Uma forma simples, e profundamente eficaz, é: convidar a criança para participar do que você já está fazendo.
- Cozinhar? Deixe ela mexer a massa.
- Dobrar roupa? Ela pode separar meias.
- Regar plantas? Dê um copinho pequeno de água.
- Organizar a casa? Peça para ela escolher onde vai guardar um objeto.
Esses momentos participativos são brincadeira pura: tem narrativa, tem ação, tem presença, tem relação. E devolvem à criança aquilo que a tela não dá: a experiência de existir na vida real. E adulto, a oportunidade de conhecer partes do filho que não voltam mais. E então, depois — só depois — você pode incluir 10 minutos de presença simples, sem pressa e sem meta. Às vezes apenas olhar, estar ali, deixar a criança te mostrar algo… já é o que ela precisa.
Em suma: existe um caminho de volta. Um passo de cada vez. Um gesto pequeno, mas cheio de intenção. Porque quando a casa volta a ter movimento, imaginação e micro-baguncinhas de infância… a vida volta a pulsar.
Débora Vieira é psicóloga clínica e editora da Rede Mãos Dadas.
