Garantindo os direitos das crianças: em defesa da vida

Cliff Palace, uma ruína encravada no meio de um paredão rochoso num desfiladeiro do Parque Nacional Mesa Verde no estado do Colorado, Estados Unidos, serviu de habitação entre 1190 a 1260 d.C. para um povo hoje desconhecido (mais ou menos 100 pessoas). Eram 150 aposentos feitos em adobe que também serviam como celeiros. Tudo isto construído numa fenda que mede mais ou menos 88 metros de largura, 18 de altura e uns 27 de profundidade e que fica localizada na parte mais alta da parede rochosa.

Cliff Palace: lugar à beira de um penhasco de 300 metros, onde vivia um povo hoje desconhecido

Cliff Palace: lugar à beira de um

penhasco de 300 metros,

onde vivia um povo hoje desconhecido

No Parque Nacional Mesa Verde há outras 39 habitações em cavernas semelhantes a essa. O povo que ali viveu subia uns 30 metros de paredão acima para cultivar milho e mandioca e descia uns 300 metros (o que equivale a mais de 100 andares) para caçar e pescar no fundo do desfiladeiro.

Num lugar assim como seria possível ter filhos? Era necessário administrar o fato de que com apenas 27 metros de espaço entre o fundo da caverna até a sua entrada, toda criança ao começar a engatinhar já estava literalmente a alguns passos de uma queda de 300 metros! Você consegue imaginar o esforço constante para evitar que uma criança caísse do penhasco? Esforço contínuo, ininterrupto, tarefa ingrata. De acordo com estudos arqueológicos, a taxa de mortalidade infantil até os três anos de idade naquele povo chegava a 50%! Os idosos também não sobreviviam muito tempo. A expectativa de vida ali girava em torno de 35 anos.

Imagine que um dia algum jovem tenha visto sua mãe chorar a perda de mais um filho e que ele tenha resolvido agir: começou a conversar com todos, discutir o porquê daquela situação e pressionar as anciãs, líderes da tribo. Vamos supor que o jovem tenha conseguido convencê-las de que a culpa por tantas perdas não era dos deuses nem dos meninos levados, mas do fato de que aquele não era um lugar propício para crianças!

Quanto tempo levaria para que aquele povo habilidoso e obviamente inteligente descobrisse que a decisão sobre onde morar deveria incluir também os interesses dos seus membros mais fracos? Quanto tempo levou para que eles percebessem que sem as crianças eles colocavam em risco sua própria longevidade e sem os mais velhos eles perdiam a sabedoria e o significado para a existência? Não sabemos. O que sabemos é que a ocupação do Cliff Palace durou uns 70 anos, nos quais muitas crianças se perderam.

Defesa de direitos é o trabalho desse jovem imaginário: refletir em grupo sobre como as decisões feitas nos lugares de poder afetam os mais vulneráveis em nossas comunidades, e, tendo refletido, ir à luta. Defender direitos é “procurar com os mais vulneráveis e em seu nome resolver as causas fundamentais da pobreza, trazer justiça e apoiar o bom desenvolvimento por meio da influência nas políticas e nas práticas dos poderosos”.¹

O que será que Deus pensa da sociedade brasileira e das decisões que tomamos como povo? É certo que nossos filhos não estão sujeitos todos os dias a uma queda de 300 metros penhasco abaixo. Mas 45% de nossas crianças e adolescentes vivem hoje em situação de pobreza extrema,² presas em um ciclo que inclui a violência, a falta de acesso a conhecimentos básicos, a privação de vários direitos, o isolamento e a completa falta de poder.

Talvez aquele povo tivesse uma desculpa: estava em guerra e precisava da proteção que aquele lugar lhes proporcionava. Qual é a nossa desculpa? Mantemos um sistema que é opressor para quase a metade de nossos filhos!

O nosso penhasco é a desigualdade social, sustentada pela corrupção generalizada, incluindo a de nossos governantes imorais e gananciosos. Nesse penhasco sacrificamos milhares de crianças todos os dias. Nossos líderes matam criancinhas quando desviam o dinheiro que deveria ter gerado empregos, combatido a fome, garantido a educação e aumentado o acesso do nosso povo à educação com qualidade.

Mas em vez de enfrentar os problemas básicos da nossa sociedade, insistimos, por exemplo, em brigar com os adolescentes, um dos grupos mais afetados pelas injustiças de uma sociedade que está longe de Deus. Colocar meninos na cadeia, medida tão propagada pela mídia ultimamente, não é solução; é repetir o que já foi feito no passado sem nenhum sucesso³. Reduzir a idade penal só resulta em mais candidatos ao sistema penitenciário falido e totalmente ineficaz que temos.

É como se aquela sociedade antiga, moradora do Cliff Palace, criasse a seguinte regra: “Toda criança que chegar perto do despenhadeiro será empurrada morro abaixo”. Uma regra assim não diminuiria o problema, pelo contrário, faria o índice de mortalidade infantil crescer. Por quê? Porque a verdadeira questão não seria enfrentada. O grande problema brasileiro não é a idade com a qual um cidadão pode ser colocado atrás das grades. O nosso maior pecado é a sociedade desigual, imoral e perversa que criamos e que insistimos em manter.

As razões pelas quais todo cristão autêntico deve se envolver na luta pela defesa dos direitos da criança, do adolescente, do idoso, dos povos indígenas, dos portadores de deficiências, dos que estão de alguma forma em posição de vulnerabilidade são muitas, imperativas e inadiáveis. Não queremos ouvir da boca do profeta palavras como essas:

“Há ímpios no meio do meu povo: homens que ficam à espreita como num esconderijo de caçadores de pássaros; preparam armadilhas para capturar gente. Suas casas estão cheias de engano, como gaiolas cheias de pássaros. E assim eles se tornaram poderosos e ricos, estão gordos e bem alimentados. Não há limites para as suas obras más. Não se empenham pela causa do órfão, nem defendem os direitos do pobre. Não devo eu castigá-los?’, pergunta o Senhor. ‘Não devo eu vingar-me de uma nação como essa?” (Jr 5.26-29).

Notas:
1. Retirado da Compreensão da Defesa de Direitos, p. 29, guia ROOTS, Tearfund, Reino Unido.
2. Situação da infância no Brasil, UNICEF, 2005, p. 5.
3. A imputabilidade penal no Brasil já foi de nove anos (Revista Transformação; 2004, p. 6.)