O que você deixa de ver enquanto seu filho brinca

O que você deixa de ver enquanto seu filho brinca

O brincar solitário como lugar onde o pensamento ganha forma, o caos encontra trilho e o mundo interno respira.

 

Você já parou para ver uma criança brincando sozinha? Parou para ver mesmo? O que está acontecendo ali? Naquele momento discreto — por pouco sagrado — em que o menino ou a menina se recolhem para brincarem sozinhos. Para muitos adultos, esse tempo parece apenas um silêncio. Mas para a criança é grande movimento. É vida conversando consigo mesma. Histórias que o brincar traz para entender, para transformar, para suportar e, às vezes, simplesmente para sonhar. Observe bem: não falo aqui da criança com telas. Estamos falando do brincar criativo, provocativo, sonhativo: ativo. 

A criança escolhe o que tem por perto: bonecos gastos, potinhos, panos, pedrinhas. Coisas familiares, disponíveis — mas cheias de ressonância emocional. E, com esses elementos simples, ela constrói um teatro interno onde emoções difusas encontram forma. O medo vira um monstro, a coragem ganha capa, a dúvida se transforma em uma personagem indecisa, o desejo vira um herói que tenta outra vez. No brincar, aquilo que era apenas sensação vira enredo. Aquilo que era caos vira sequência. Aquilo que era grande demais vira algo que cabe na mão. Assim as histórias dão corpo ao que ainda não tem nome. 

Nessa história que inventa, a criança encontra o que precisa: começo, meio, fim. Não porque alguém ensinou, mas porque seu mundo interno pede um ritmo compreensível. É nessa ordem inventada que ela se organiza. Ela repete para compreender. Cria para transformar. Narra para suportar. E assim descobre que pode cair, levantar, frustrar-se, tentar outra vez. Tudo dentro do seu tempo. Tudo dentro do seu domínio simbólico. E essa é a beleza do brincar solitário: a criança percebe que ela mesma cria o trilho por onde caminha por dentro.

Afinal, no faz de conta, a criança pode ser muitas de si. A que cuida. A que enfrenta. A que manda. A que falha. A que tenta de novo. Cada personagem abre uma janela interna:
“Posso testar várias maneiras.” “Posso sentir diferente do que senti antes.” “Posso experimentar sem que ninguém me julgue.” O brincar é o único lugar da infância em que todas as versões dela têm espaço.

Assim, diante disso tudo, quando o adulto contempla esse brincar – sem corrigir, sem acelerar – algo nele também se reorganiza. A pressa diminui. A lógica rígida se afrouxa. A infância encontra espaço para ser admirada e conhecida. Porque a narrativa da história do brincar da criança é uma arte criada, com sua estrutura própria. E toda arte pede pausa. Pede respiro. Pede olhos que saibam ver. Quando o adulto observa primeiro e só depois entra, ele aprende o tempo da criança — que é sempre mais lento, mais vivo, mais inteiro e verdadeiro. E assim ele encontra o tesouro: ele consegue realmente conhecer mais sua criança.

Pra fechar e levantar um côro: o brincar sozinho não é isolamento – como a proposta das telas faz acontecer (mas isso é conversa, muita conversa, pra outro texto!). Ao contrário, esse brincar ativo é diálogo. É conversa profunda com o próprio mundo interno. É assim que a criança se entende, se regula, se experimenta, se amplia. E, quando o adulto se permite observar com calma, ele aprende algo fundamental: há beleza onde antes havia pressa. E é nessa beleza — simples, silenciosa, inventada — que a infância se organiza e cresce.

Por Débora Vieira Mendonça, psicóloga clínica e editora da Rede Mãos Dadas.

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