A dor silenciosa de interromper o brincar — e como nossa pressa revela feridas que não são da criança.
A cena é esta: a criança brincando na sala. Ela está lá: concentrada, tentando, quase descobrindo algo… e a torre cai. O olhar do adulto perspicaz percebeu a respiração suspensa, o esforço genuíno, o fio delicado da curiosidade sendo tecido… e o desgosto do fracasso batendo à porta. Então, cheio de boa intenção, esse adulto entra em cena: “Não, calma… é assim, olha.” Ele corrige e mostra “como se faz”. Pronto. Criança salva da frustração.
E, sem querer, salva também da experiência.
Eis o silêncio do brincar interrompido: a criança aprendendo que frustrar-se é errado. Errar é sinônimo de fracassar. Tentar é perigoso. “Se algo der errado, é porque eu não sei e já deveria saber”. (Mas como saberia se nunca fiz antes? Como e porquê ser natural ou passivo em relação a algo que de fato eu não consegui fazer?)
Ao olharmos este cenário mais de perto, conseguimos perceber um provável movimento mais profundo acontecendo: é como se cada tentativa frustrada da criança ecoasse algo antigo… do adulto. Um eco que não vem do presente, mas da própria infância dele. Uma memória que não tem nome, mas está lá, ativa. A ferida sensível que desperta sem pedir licença — aparece na forma de pressa, de correção automática, de medo de ver a criança errar (e sofrer).
Nós somos nossa história. Vivemos aquilo que aprendemos a significar em nosso caminho. E repetimos o aprendido. Quando um adulto precisa corrigir o brincar do seu filho ou, num outro movimento muito parecido, quando ele compara o brincar do filho com o de outras crianças, quase nunca está olhando para “seu filho brincando” ou “as outras crianças”. O que provavelmente está ocorrendo é que ele está olhando para uma versão idealizada de si mesmo, uma criança que ele mesmo gostaria de ter sido. Um roteiro que nasceu antes do filho — e que nem sempre corresponde à realidade do desenvolvimento da criança de agora.
Ajudar a acertar, ou comparar a criança com outras, nesse sentido, não é maldade. É tentativa de atingir o alvo. É medo de ver o filho “ficar para trás”. É possível desejo inconsciente de finalmente “fazer dar certo” através da criança. Entretanto, em vez de proteger, esse movimento pode apagar o que é único na criança real que está ali. A criança que não vive no olhar externo. A criança que não existe para cumprir a fantasia interna. A criança que tem seu próprio tempo, seu próprio ritmo, sua própria forma de descobrir o mundo.
Esse movimento de querer poupar os filhos da dor é quase inevitável no ser mãe, ser pai. Queremos que nossos filhos prosperem, afinal. Porém, o adulto que aprende a revisitar suas expectativas internas enquanto observa o filho brincando — e um jeito bem eficaz de fazer isso é pensar intencionalmente na própria respiração enquanto observa por mais tempo, sem falar — descobre novas maneiras de não interromper o que nasce no brincar.
“Tudo tem a sua ocasião própria e todo o propósito debaixo do céu tem o seu tempo. […]
…há tempo de calar, e tempo de falar.” (Eclesiastes 3:1, 7b)
E a criança pode tentar de novo. A criança existe no próprio tempo — mais imperfeito, torto, demorado. Infantil. A torre cai. Mas desta vez ficou um pouco mais alta! Durou mais tempo. Teve mais presença. Teve mais coragem. Mais autoria. Um pequeno avanço. Uma pausa do adulto que mudou tudo. Um fio de consciência e, de repente, algo fundamental se reorganiza: o brincar volta a ter espaço para ser o que é — processo, descoberta, tentativa, narrativa da própria infância.
Reponda a enquete abaixo, como essa realidade acontece no seu maternar/ parentar?
Débora Vieira é psicóloga clínica e editora da Rede Mãos Dadas.
