A infância sob avaliação — o peso que os pais carregam ao comparar
Lá está a mãe ou o pai se esforçando para cumprir seu papel de participante ativo no brincar do filho dentro da sua rotina real, procurando se fazer presente, procurando entender o que está acontecendo no mundo encantado do brincar (muitas palmas!) e… pá! Um pensamento invade: “Eita… Meu filho já não deveria brincar de outro jeito?”, “Isso está certo?’, “Será que ele não está atrasado?”, “Parece que a criança da minha amiga já faz diferente…”
Quase sem perceber uma régua invisível aparece.
Uma régua que não está nas mãos, mas no olhar. Régua feita de comparações, alimentada por redes sociais, relatos alheios, expectativas familiares e… prováveis medos antigos. E aí já aconteceu: a partir desse momento o brincar deixou de ser apenas brincar.
À primeira vista, parece que essa régua está medindo a criança e seu brincar. Mas, olhando com mais cuidado, podemos ver que ela está sobre outra coisa: na insegurança dos pais em estarem falhando em algo diante do novo ou diante do que já viram antes, na própria história. Quando comparamos, raramente estamos apenas olhando para nossos filhos. Estamos olhando para fora — para o filho do outro — e, ao mesmo tempo, para dentro: para a criança que fomos, para as dores que carregamos por não termos sido “iguais”, para a história pessoal marcada por avaliações, rankings, expectativas e ajustes constantes. Aqui, o erro já não é parte do caminho, mas sinal de falha. A brincadeira, que deveria ir “rumo ao nada”, agora precisa chegar a algum lugar. Porém, o brincar não foi feito para provar nada. Ele existe justamente porque é inútil no melhor sentido da palavra. Lembremos que é no brincar sem objetivo que a criança cria, elabora, experimenta, erra, tenta de novo, supera — se houver algo a ser superado. Quando o brincar precisa dar resultado, perde sua essência. A régua, querendo cuidar, acaba roubando o amor que observa sem medir. Rouba a curiosidade que pergunta em vez de comparar. Rouba o espaço para o encontro. E o brincar vira prova: alguém está sendo avaliado agora.
Mas não existem tantos conhecimentos hoje sobre o desenvolvimento infantil? Não há questões de fato a serem observadas para avaliar o padrão de desenvolvimento saudável de uma criança? A resposta é sim, claro. Mas existe uma diferença fundamental entre medir o brincar e “localizar” o brincar. Usar os conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil como uma régua — rígida, comparativa, ansiosa — e usá-los como uma bússola. A bússola não exige que todas as crianças estejam no mesmo lugar. Ela apenas ajuda a perceber se há caminho, se há movimento, se há expansão. Ela não pergunta “está igual?”, mas “para onde isso aponta?”. Conhecer marcos do desenvolvimento não serve para apressar o brincar, nem para moldá-lo a um padrão ideal. Serve para sustentar um olhar atento e responsável — aquele que percebe quando algo está muito distante do esperado e entende que cuidar também é procurar ajuda.
Mas note: observar e “perceber o lugar” do brincar é uma coisa, comparar o brincar é outra. Confiar no ritmo da criança não é fechar os olhos. Ao contrário: é manter os olhos abertos, sem pressa e sem pânico. É observar sem medir. É acompanhar sem pressionar. Quando algo preocupa de verdade — quando o brincar não se expande, quando a curiosidade não aparece, quando o contato não se constroi, quando o mundo interno parece empobrecido — buscar orientação profissional não é fracasso parental; é cuidado em tempo. A bússola não apressa o caminho. Ela evita que ele se perca.
Talvez, então, a pergunta importante não seja “Meu filho já deveria brincar assim?”, mas: O que em mim se inquieta quando meu filho não cabe “na medida”? Quando o adulto consegue, pouco a pouco, guardar a régua e pegar a bússola, algo muda. O olhar se desloca da comparação para a curiosidade. Do julgamento para a observação viva. Da ansiedade para a presença. Pois o desenvolvimento saudável não floresce sob comparação, mas também não cresce no descuido. Ele se constroi quando o adulto consegue confiar sem negligenciar, observar sem comparar, e sustentar presença suficiente para perceber quando é hora de esperar — e quando é hora de buscar ajuda.
“Ao observar tudo isso, comecei a refletir, vi e tirei uma lição”.
(Provérbios 24:32)
Diante disso tudo, este é nosso maior norte: o brincar, quando não precisa provar nada, segue fazendo o que sempre fez de melhor: abrir caminhos internos, criar mundos possíveis e contar, no tempo certo, a história única de cada criança.
Débora Vieira é psicóloga clínica e editora da Rede Mãos Dadas.
