Somos todos agentes do reino

É possível criar uma rede de proteção à criança e ao adolescente em risco sem a igreja?
Não. A igreja mantém viva a reflexão teológica que nos molda quanto à motivação correta para o serviço cristão e corrige a nossa prática sempre que nos desviamos do alvo original. Refletir sobre as razões bíblicas que justificam nosso envolvimento com crianças em risco é o objetivo deste artigo.

“Dediquei a minha vida para servir a Deus e aqui estou, lavando as roupas sujas dessas crianças. Será que estou realmente servindo ao reino de Deus com esse trabalho? Não seria suficiente contar-lhes sobre Jesus? Qualquer um, até mesmo aqueles que não o conhecem, pode fazer o que faço!”

Em Atos 7 os apóstolos parecem deixar claro que o ministério da palavra de Deus é mais importante que a ação social. Muitos cristãos hoje em dia mantêm essa visão.

Então, por que Dorcas foi elogiada por fazer roupas para as pessoas pobres? (At 9.36-39.) O que motivou os apóstolos a apontarem diáconos para cuidar das viúvas? A convicção de que o evangelho não consiste exclusivamente em palavras, mas inclui também a ação.

Por que não deixar o mundo cuidar do trabalho social?
Há séculos a igreja vem discutindo a relação entre o mundo e o reino de Deus. Às vezes, essas discussões levavam a brigas e, na Europa, houve até mesmo guerras entre grupos de posições contrárias. O mundo reformado, protestante, geralmente tem assumido três posições distintas:

O reino de Deus contra o reino do mundo
O reino de Deus existe em oposição absoluta ao mundo secular e ao mundo da política. Este grupo se baseia em textos bíblicos como Apocalipse 18.4: “Ouvi outra voz do céu dizendo: Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados e para não participardes dos seus flagelos”.

Alguns grupos radicais se empenharam para criar comunidades cristãs puras e totalmente isoladas do mundo. Essa tradição persiste até hoje em grupos como os Amish, nos Estados Unidos, e continua presente em algumas seitas e cultos que muitas vezes se isolam na tentativa de criar uma comunidade cristã perfeita. Geralmente essas tentativas são frustradas, às vezes de forma trágica.

O reino de Deus separado do reino do mundo
Uma segunda tradição, ensinada por Martinho Lutero, vê o reino de Deus e os reinos deste mundo como sistemas distintos e separados. Eles existem paralelamente um ao outro. Lei e poder governam os reinos deste mundo; a Palavra de Deus governa o reino de Deus. Esses dois reinos são ordenados por Deus e, portanto, um deve respeitar o outro.

Os cristãos devem apoiar e orar pelas autoridades seculares como são exortados em Romanos 13.1-6 ou em 1 Timóteo 2.1-2. Mas, em geral, é melhor que fiquem longe da política. Por isso, cristãos apoiaram o governo de Hitler como um agente de Deus, que trazia a lei e a ordem!

O reino de Deus transformando o reino do mundo
A terceira tradição, ensinada por Calvino e Zwínglio, começou com a idéia de que Jesus é Senhor hoje e não apenas o será num mundo vindouro. Eles reconheciam os dois reinos — o reino de Deus e o reino deste mundo —, mas não criam que o crente vive em dois mundos separados, e sim em apenas um, o qual está sujeito ao senhorio de Cristo.

Semelhantemente, o teólogo alemão Karl Barth, insatisfeito com a reação da igreja alemã ao governo de Hitler, disse que todas as áreas da vida pertencem a Cristo. Isso significa, por exemplo, que o Estado pertence a Cristo e existe para servir ao reino de Cristo. Significa também que os cristãos e a igreja são responsáveis por moldar todas as esferas da vida. O reino de Deus tem como tarefa penetrar e transformar o mundo político. Apoio bíblico para esta perspectiva começa com a criação de Adão e Eva, feitos à imagem e semelhança de Deus, o qual deu-lhes a incumbência de serem mordomos da criação. O significado de mordomia inclui a idéia de que os pobres têm direitos iguais aos recursos criados por Deus. Este era e ainda é o propósito de Deus para o mundo criado. A igreja é o agente de Deus trabalhando para tornar o mundo mais próximo dos seus propósitos originais. A melhor maneira de se fazer isso, é claro, é transformar o coração do homem por meio da salvação, mas essa tarefa não é a única para a qual fomos chamados. A igreja precisa estar envolvida em várias lutas interconectadas:

a) Luta pela justiça econômica e contra a opressão;

b) Luta pelos direitos humanos (incluindo os direitos das crianças) e pela liberdade;

c) Luta contra o racismo e outras formas de discriminação;

d) Luta pela harmonia ecológica, contra a destruição da natureza, fruto dos abusos de uma sociedade consumista.

Na história temos muitos exemplos em que a igreja abriu o caminho para essas lutas. Mas, muitas vezes, quando o mundo começa a reagir, a igreja se retrai. Infelizmente, o mundo não-cristão, mesmo quando se propõe a fazer o bem, não o faz de acordo com os propósitos e parâmetros de Deus. Esses parâmetros incluem não somente aspectos materiais, mas também espirituais. As ferramentas de que a igreja dispõe incluem: o serviço em humildade e amor, a oração e o mover do Espírito. Um dos seus papéis, por vezes negligenciado, é o da ação profética, a ação do sal que preserva.

“Então, é por isso que estou aqui metida até os cotovelos na água suja de roupas encardidas! Sou uma agente do reino de Deus! Trabalho para transformar o mundo. Não sou chamada, como alguns profetas do Antigo Testamento, para criticar, mas para agir como Dorcas e seguir o conselho de Pedro: ‘A conduta de vocês entre os pagãos deve ser boa, para que, quando eles os acusarem de criminosos, tenham de reconhecer que vocês praticam boas ações, e assim louvem a Deus no dia da sua vinda’ (1 Pe 2.12).”

Autor: John Collier, é facilitador da Viva Network e foi um dos idealizadores da revista MÃOS DADAS