Voz que clama na floresta…

Márcia e Edson, com a pequena Hakani: "Como negar ajuda às mães indígenas que nos procuravam para salvar seus filhos?"

Márcia e Edson, com a pequena Hakani:

“Como negar ajuda às mães indígenas

que nos procuravam para salvar seus filhos?”

ONG evangélica abre a boca contra o “infanticídio indígena” no Brasil

O garoto Bibi tinha nove anos quando tomou a decisão de proteger do risco da morte sua irmã Hakani, de 3 anos. Ambos são Suruwahá (etnia semi-isolada no sul da Amazônia). A indiazinha nasceu com uma defi ciência neuromotora. Segundo costume da tribo, ela é filha de um “espírito mau” e, portanto, deveria ser morta. Os pais prepararam o líquido venenoso extraído de um cipó, mas não tiveram coragem de matá-la. Cometeram suicídio.

Hakani é uma das várias personagens de um drama real entre tribos indígenas no Brasil: a morte de crianças recém-nascidas por motivos culturais. As mortes muitas vezes estão relacionadas à garantia da sobrevivência econômica de toda a tribo, à escassez no ecossistema, ao controle de natalidade ou ao equilíbrio entre os sexos. Hakani sobreviveu graças à sua resistência e sua vontade de viver. Graças também à ajuda de seu irmão Bibi (hoje com 18 anos) e do casal de missionários Edson e Márcia Suzuki, que buscaram atendimento médico para ela.

Uma outra personagem do drama é Muwaji Suruwaha, dos Zuruahã (etnia semi-isolada no Amazonas). Muwaji havia decidido abandonar a filha nascida com paralisia cerebral. Entregou-a aos familiares para que a matassem, mas depois se arrependeu. Com a ajuda dos Suzuki, a pequena Iganani está se reabilitando na Rede de Hospitais Sarah em Brasília.

Hakani e Iganani resistiram incansavelmente, mesmo rejeitadas por seus povos. Essas duas histórias fizeram com que o casal Suzuki, etnolinguistas e missionários entre os indígenas há mais de 20 anos, tomasse duas decisões corajosas. A primeira, adotar a órfã Hakani, mesmo com toda burocracia que envolve tal tipo de adoção. A segunda, abrir a boca em favor das crianças indígenas que nascem condenadas à morte.

Hakani, hoje com 12 anos de idade, vive uma infância alegre, fazendo juz ao significado de seu nome (“sorriso”). A segunda decisão foi só o início de uma grande luta. Depois de ajudar Muwaji, outros pais indígenas também pediram o apoio do casal de missionários para salvar seus fi lhos. “Como negar ajuda às mães indígenas que nos procuravam para salvar seus filhos, sem ser incoerentes com a mensagem do Reino de Deus?”, questiona o casal.

Voz Pela Vida
Surgiu então em 2006 a ONG ATINI – Voz Pela Vida. Mesmo com pouca estrutura e experiência, a ATINI se engajou no esforço para que o governo e a sociedade considerem o “infanticídio indígena”¹ uma situação real que exige ações públicas de cuidado e proteção. “Não queremos punir os indígenas; apenas garantir o socorro às crianças em risco”, afirmam os Suzuki.

A oposição de alguns antropólogos e órgãos do governo tornou a causa ainda mais difícil. “Eles confundem respeito à diversidade cultural com tolerância universal. Acham que tudo é possível em nome da cultura”, critica Márcia.

No entanto, a ATINI tem recebido apoio de igrejas, líderes indígenas, antropólogos e políticos.

Um dos respeitados líderes indígenas do Xingu, Kotok Kamayurá, disse que “o tempo de enterrar crianças já passou; hoje precisamos de ajuda para criá-las”. Em carta oficial endereçada à ONG, o Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (CONPLEI) declara que a “vida precede a cultura”.

O tamanho do desafio
Nem o Ministério da Saúde nem a Fundação Nacional de Saúde têm dados precisos sobre a morte de crianças indígenas por conta de razões culturais.

Diante do desafi o, as crianças salvas são a garantia de que vale a pena defendê-las. Toda criança indígena tem o direito à saúde. Cabe ao governo a responsabilidade de garantir esse direito. Negar socorro é caminhar na direção oposta.²

Os grandes heróis deste drama, na verdade, são os pais e as mães que, mesmo vulneráveis em suas tribos, lutam para manter a vida de seus filhos.

Notas:

¹ Do ponto de vista legal, o termo não é apropriado, porque “infanticídio” se refere a recém-nascidos mortos pela mãe em estado puerperal. Informalmente, no entanto, é usado, já que textos antropológicos evitam o termo “assassinato”.

² O deputado federal Henrique Afonso (PT-AC) elaborou um projeto de lei, ainda em discussão na Câmara Federal, chamado Lei Muwaji, que regula e promove o diálogo construtivo pró-vida com os povos indígenas em nosso país.

E a história continua…

– Entrevista com Edson e Márcia Suzuki.

– Cartilha Quebrando o Silêncio: um debate sobre o infanticídio nas comunidades indígenas do Brasil.

– Artigo Não há morte sem dor – uma visão antropológica sobre a prática do infanticídio indígena no Brasil (Dr. Ronaldo Lidório).