Dia Nacional dos Surdos: “Um dia na vida de Wilson“

Dia Nacional dos Surdos: “Um dia na vida de Wilson“

Ele começa o dia fazendo o café para a família, coloca o lixo para fora, dá uma olhada na internet para ficar por dentro das notícias e, às vezes, se não entende o que está escrito chega até a acordar a esposa para traduzir. Isto porque Wilson é surdo desde o seu nascimento. Com 44 anos, 15 destes ao lado de Márcia, e pai de Ana há 11 anos.

Pega o ônibus para ir à uma escola pública de ensino fundamental que fica em um bairro de periferia de Viçosa, MG. Esta escola acatou um projeto de inclusão proposto pelo próprio Wilson e aprovado pela câmara municipal em 2016. O projeto prevê o acompanhamento de crianças surdas no contra turno escolar com o objetivo de complementar as lacunas no entendimento destes alunos em decorrência da deficiência auditiva.

No ônibus, ele observa as pessoas conversando, trocando informações, rindo. É raro que uma pessoa se dirija a ele. Quando uma pessoa percebe que ele tem a tonalidade de voz diferente ou que não entende a conversa, rapidinho encerra o assunto. Mesmo assim, ele se esforça. Usa o celular para tentar se comunicar digitando o que gostaria de dizer. Ele fica feliz quando entra alguém conhecido que se dispõe a conversar devagar, olhando para ele. Isto lhe permite fazer a leitura labial. Se for uma pessoa que sabe Libras, aí sim, o assunto flui.

Na escola tem intérprete e pessoas que já aprenderam Libras, e as crianças surdas com quem ele passa a maior parte da manhã. Às vezes, o conteúdo é difícil até para ele, já que teve que aprender somente por observação. Em sua época de escola não havia intérpretes nem tentativas de complementar o ensino para crianças com alguma necessidade especial.

Na sala de aula, ele tira da mochila objetos concretos, comprados com o próprio salário e começa a ensinar as crianças, de um modo mais apropriado para quem não ouve. Quando percebe apatia, tristeza, inquietação em alguma criança, ele dá mais atenção a esta. Conta alguma história usando a sua própria experiência para se aproximar afetivamente da criança.

É comum para ele chegar em casa triste em virtude das diversas situações difíceis enfrentadas por seus alunos. Ele recorre a uma pessoa ouvinte para solucionar a questão desta ou daquela criança. Já aconteceu de ir ao médico com algumas, fazer visita à família, explicar a situação e tentar orientar da melhor maneira. Mas ele não para por aí; ora por todas as crianças todos os dias.

Na hora do almoço, esquenta sua comida e em seguida descansa até a hora da fisioterapia. Isto porque está tratando de uma hérnia de disco na cervical. Se para um adulto trabalhador a dor e o transtorno causado por uma hérnia incomoda muito, para Wilson a ameaça é bem maior, já que depende do uso dos seus braços e mãos para se comunicar.

Ao chegar da fisioterapia, cumpre alguns compromissos domésticos de acordo com as necessidades do dia: varrer a casa, lavar o banheiro, colocar as roupas na máquina etc.

Como ele e a esposa trabalham em horários diferentes, muitas vezes é ele quem fica com a filha nas manhãs que não dá aula e sua esposa está trabalhando. Desde bebê, Ana aprende Libras com seus pais. Hoje, ela é fluente. Quando ele precisa ir ao banco, farmácia ou qualquer outro lugar, ela o acompanha e o ajuda na comunicação com o mundo ouvinte.

Às seis horas da tarde, Wilson pega o carro e vai buscar a esposa e a filha na escola. Buscar alguém de carro parece uma tarefa tão corriqueira. Mas não para uma pessoa surda desde o nascimento. A conquista da carteira de motorista se deu depois de muito esforço. É uma vitória que Wilson celebra com orgulho.

Quase sempre a filha tem um compromisso: ou na igreja, no coral ou no teatro. Um dos pais fica com a filha e o outro vai para casa preparar o jantar. À noite, juntos, os três conversam, assistem televisão e sempre é necessário que uma das duas ouvintes interpretem os programas ou as legendas que forem mais difíceis para o Wilson compreender.

Mais tarde, rola um “bate mão” entre amigos, uma rede de pessoas surdas de várias localidades. Wilson fica, muitas vezes, até tarde da noite imerso nas conversas por Skype. Marcia, não se assusta ao acordar e ver que o marido ainda não dormiu. Ela compreende e apoia; muitas destas conversas são terapêuticas para os amigos. É assim que Wilson comunica o amor de Deus para um grupo cuja comunicação sofre tantos obstáculos dia a dia.

Aos sábados, Wilson faz uma segunda graduação, além de dois cursos via internet.

E como chegou tão longe?

Assim que a mãe de Wilson desconfiou que ele era surdo, ainda bebê, começou as consultas e viagens a vários médicos. Sua primeira palavra aconteceu aos 5 anos de idade quando iniciou a fonoaudiologia. Sua mãe prestava bastante atenção e em casa treinava os exercícios propostos pela fonoaudióloga. A mãe também passava os mesmos exercício para os dois irmãos e pai, que são ouvintes. A família se adaptou às necessidades dele. Falam pausadamente, olhando para ele, mas não aprenderam a usar Libras.

Quando começou a ir à escola, só copiava, mas não entendia nada. Era impossível ir bem diante do pouco esforço de inclusão proporcionado pela escola. Ele se lembra de se sentir inferior às outras crianças e de sofrer por não entender o mundo ao seu redor. Ficava muito nervoso e frustrado.

Foi na adolescência que sua vida começou a mudar. A língua de sinais foi a maior descoberta de sua vida. Hoje, Wilson afirma que os sinais são a sua primeira língua. Ver é o
seu sentido prioritário já que a audição está ausente em sua vida. O mundo todo é aprendido por ele pelo que vê, sempre foi assim. Sons articulados pelos lábios se relacionam com um sentido que ele nunca experimentou e por isto são de difícil interpretação para ele. Ler os lábios era como se vivesse num país estrangeiro, sempre se comunicando com uma outra língua, não aquela que vai direto ao seu coração e mente.

Conheceu a língua de sinais através de um amigo que estudava no Ines (Instituto Nacional de Educação de Surdos) no Rio de Janeiro. Quando o amigo vinha de férias para
Viçosa, ele ensinava ao Wilson que começou a treinar com outros amigos surdos.
Aos 13 anos, sua mãe conseguiu uma vaga de aprendiz em uma gráfica. Ela mesma pagava o seu salário sem que o Wilson soubesse. Rapidamente seu “patrão” o indicou para uma gráfica maior e, aí sim, foi contratado oficialmente. Os desafios continuavam. Alguns colegas faziam brincadeiras que o deixavam incomodado. Isolamento social é o maior problema para pessoas surdas.

Em 1999, um missionário paranaense veio ministrar um curso de Libras na Primeira Igreja Batista em Viçosa. Isto atraiu a atenção de Wilson. A partir daí, ele começou a frequentar a igreja e a fazer amigos no grupo de jovens envolvidos com Libras. O grupo o incentivou a voltar a estudar e começaram a fazer uma escala de interpretação para acompanhá-lo na escola.

Foi assim que conseguiu completar o ensino fundamental e o ensino médio. Neste mesmo grupo conheceu a Márcia, uma de suas intérpretes. Juntos criaram o ministério
com surdos “Mãos de Cristo” e trabalhavam juntos na igreja. Evangelizavam os surdos, discipulavam aqueles que se convertiam e prestavam apoio nas mais diferentes necessidades. Wilson tinha um sentimento forte por Marcia que não percebeu nada, em uma tarde de filme na casa de Marcia que ele a olhou e com os lábios, disse Eu te amo e em 2004 os dois se casaram.

Com a ajuda de Márcia como intérprete, Wilson fez a faculdade de pedagogia, que proporcionou a oportunidade atual de emprego. Mas ter uma profissão e um emprego não faz jus a tudo o que Wilson representa para a sua comunidade. Ele e a esposa lideram as iniciativas do ensino de Libras na igreja. Mas não pararam por aí, em 2016 resolveram criar um novo projeto com o apoio da UFV, Universidade Federal de Viçosa. Chamado Biolibras, promove o encontro de crianças surdas da região com adultos surdos. Isto porque viram a importância deste contato. As crianças precisam de referências, de ver que a vida adulta pode ser produtiva e satisfatória mesmo diante da deficiência.

Eu vejo o Wilson como alguém muito amigo e fácil. O tipo de pessoa com quem a gente gosta de estar e que nos deixa bem à vontade. Ele é daqueles que falam muita coisa sem dizer nenhuma palavra”, diz o Pastor Jony da Igreja Presbiteriana de Viçosa, na qual ele e a família congregam hoje.

Wilson demonstra sua resiliência na grande capacidade que tem de perseverar. Ele vê obstáculos como algo a ser ultrapassado e se aplica neste intuito. É animado, amigo, consciente de que existe um papel especial, dado por Deus, para ele desempenhar. É isto que lhe dá esperança.

Escrito por Priscila Assis, publicado no livro Coragem da Alma – a virtude dos resilientes resultado do Prêmio Prêmio Cida Mattar em 2019.

 

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