Dia 3: “Minhas fotos e cicatrizes”
Há circunstâncias na vida que nos deixam marcados para sempre, com cicatrizes ou fotos na alma. Algumas das cicatrizes são visíveis, outras nos trazem lembranças pouco agradáveis, e outras são como fotografias que nos fazem rir ou chorar.
Quando revejo mentalmente esse álbum de fotografias, ou observo minhas cicatrizes, não posso deixar de reconhecer a mão de Deus em minha vida.
Estou vendo algumas fotos que me fazem rir. Eu era apenas um garoto que saía com os amigos para brincar naquelas tardes de verão. São fotos que trazem uma alegria inexplicável, mas há também cicatrizes que ora me fazem chorar, ora me fazem refletir.
Meu pai foi um alcóolatra. O mais difícil de ter um pai alcóolatra é a agressão: por palavra, por ação e por ausência (porque a ausência do pai é sempre uma agressão). Quase não suportava o sentimento de impotência quando o alvo da agressão era a minha mãe. Quantas vezes vi a faca da cozinha perto de sua barriga! Quantas vezes a vi chorar desconsoladamente!
Uma cicatriz sempre se sobressai quando faço um inventário de todas elas. Era véspera de Natal, e meu pai estava em um dos períodos de ausência, sem dar notícias. Como eu era criança, ainda acreditava que ele viria. Tinha no fundo a esperança de abrir os presentes de Natal trazidos pelo Menino Deus. Naquela noite, deitei-me cedo, pensando que assim apressaria a chegada dos presentes. Em certo momento entreabri um olho. Vi as três camas de meus irmãos, sem presentes.
Ao fundo, grudada à máquina de costura, estava minha mãe. Fechei aquele olho curioso. Acordei mais duas vezes durante a noite para ver se algo havia mudado. Minha mãe continuava trabalhando e nossas camas, vazias.
Pela primeira vez, entendi a minha realidade. Eu era um garoto pobre que tinha um pai alcóolatra — o Menino Deus não visitava essas crianças. Abri os olhos para ver o Menino Deus e, em seu lugar, vi minha mãe costurando para que no dia 25 pudéssemos ter o que comer.
Agora, uma foto mais bonita e alegre. Foi em uma noite de Sexta- Feira Santa, quando assisti no campo de futebol um filme sobre a paixão de Cristo. No final, recebi um Novo Testamento. Fui cedo para a cama e comecei a olhar o livro. Fiquei maravilhado com as figuras. Fui da primeira página até aquela em que Cristo morria e ressuscitava. Só olhava as figuras, porque elas me faziam lembrar de cenas do filme. Minha mente dá um grande salto no álbum e na coleção de cicatrizes até à minha juventude, não mais marcada pela impotência, e sim pela valentia.
Em defesa de minha mãe, talvez mais em defesa própria, enfrentei o meu pai. O confronto me trouxe mais danos que benefícios: odiei meu pai com todas as forças e causei uma dor imensa à minha mãe. As feridas sofridas na infância fi caram ainda mais profundas.
Volto às fotos. A mais linda de todas é aquela que retrata o momento de meu encontro com Deus. Uma noite, meus primos me convidaram para ver um filme na igreja deles. Aceitei sem muito entusiasmo. No entanto, quando chegou a hora do apelo, vi-me levantando a mão para receber o Senhor. A alegria que senti foi indescritível.
Uma última foto: meu encontro com Marlene. Linda. Nem muito alta, nem muito baixa, na medida certa para mim. Namoramos e casamos. Pobre Marlene! Logo descobriu que eu era, sem o álcool, igual ao meu pai. E eu descobri que Deus tinha ficado na superfície da minha vida. Minhas feridas seguiam abertas e sangrando.
Eu tinha algumas perguntas. Como aceitar a Deus se ele tinha nos abandonado naquele Natal só por que éramos pobres? Como aceitar a Deus como pai, se meu pai me castigava injustamente e machucava a pessoa que eu mais amava, minha mãe? Então eu abri a ele a minha alma e o convidei a ver minhas feridas. Deus me fez lembrar do filme: “Se eu te perdoei, por que não perdoas teu pai?”.
Chorei como nunca antes. E perdoei meu pai e a Deus. Hoje, ao repassar de novo esta coleção de fotos e cicatrizes, percebo que Deus nunca esteve ausente de nossas vidas, ao contrário de meu pai terreno. Ele esteve presente em minhas brincadeiras e em minhas alegrias. Esteve presente naquele Natal. Esteve encarnado em minha mãe dando-nos amor, entrega, negação.
Esteve presente nas noites em que vi as figuras do Novo Testamento. Esteve encarnado em meus primos, que me levaram a Jesus. Esteve encarnado em meu pastor, em meus professores, em meus irmãos. E ele segue presente hoje na minha vida.
Se você lê estas páginas e tem um ministério com crianças, quero, antes de tudo, Parabenizá-lo. Seu ministério é um dos mais lindos e importantes da vida da igreja. Sei que é muito difícil ministrar à crianças em situação de risco, mas Deus está ao seu lado e do seu lado. O mais importante é refletir Deus em sua vida, porque dessa maneira, cada vez que uma criança se encontrar com você, terá um encontro com o próprio Deus.
Para uma criança que sofre, os sentimentos de abandono e de rejeição podem ser fatais. Se você permitir que Deus seja visto por meio de sua vida, essas crianças serão abençoadas com a sua presença. O Senhor te enviará crianças com cicatrizes profundas e também, com fotos lindas, e seu dever será ajudá-las a ver que Deus está presente. Como?
Demonstre a elas amor, muito amor, e ajude-as a ler a Palavra de Deus. Elas descobrirão um Deus de amor que oferece o seu perdão e companhia constante. E outro instrumento valioso é o diálogo. Ganhe antes de tudo a confiança delas, e estabeleça um diálogo em que possam compartilhar o que sentem e o que estão vivendo em suas casas. Quando uma criança chega perto, você tem em suas mãos a possibilidade de um grande milagre.
Por Rev. José Soto
Origem: Revista Mãos Dadas. Edição 19
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